29.10.09

ROY DECARAVA, O POETA DO HARLEM



1963. John Coltrane por Roy DeCarava ©





“One of the things that got to me, was that I felt that black people were not being portrayed in a serious and in an artistic way.”
 Roy DeCarava, in New York Times.

Se Josef Sudek era "O poeta de Praga", Roy DeCarava devia ter o epiteto de "O poeta do Harlem", ou se se quiser ser mais gongórico, o de um quase Obama da fotografia norte-americana. Situemos-nos; nascido em 1919, DeCarava foi o primeiro negro a impor-se na cena fotográfica contemporanea. Essencialmente através de uma documentação empenhada do seu Harlem natal, num registo que se projecta bem além da Street Photography,  feito de subliminares interpetrações plásticas do quotidiano do caldeirão sócio-cultural do mítico bairro nova-iorquino, com normal incidência na trepidante cena jazz. Protegido de  Edward Steichen, abre nos anos 50 a  "A Photographer`s Gallery",  casa afamada por ser um dos primeiros espaços expositivos nova iorquinos a celebrar exclusivamente a Grande Fotografia. Polémico qb, nunca fez cedências ao mainstream, antes perseguiu coerente e singular assinatura. Tinha o raro talento do dominio técnico que lhe permitiu ser um dos muito poucos que, jamais usando flash, conseguia sistemáticamente que os seus clichés respirassem numa envolvente e densa paleta de cinzas e negros profundos, de onde a vida lentamente emerge.


Fui apresentado à sua obra nos idos de 80 na cooperativa Árvore no Porto, onde pontificavam no corpo docente uns seus acirrados admiradores. Confesso com vergonha que quase me tinha esquecido deste talento, até tropeçar no jornal da sua aldeia, em mais um obituário, este sem as fanfarras de passamentos recentes.
Mas vou (vamos) sempre a tempo de voltar a pasmar perante este miraculoso Coltrane, que sopra no seu sax como se não houvesse amanhã. Para quem não conhece, urge visitar portofolio no Lens, e info variada aqui.

26.10.09

A PINA O QUE É DE PINA.



                                                               Rio de Janeiro. © João Pina

Há uns anos atrás, desloquei-me à AR para uma sessão foto com o então governante Joaquim Pina Moura.
Que me submeteu a uma  barragem de perguntas acerca do ofício de fotógrafo independente, das dificuldades e contigências de exercer a profissão no mercado nacional. O interesse justificava-se, pois tinha um filho que manifestava irreprimível empenho em profissionalizar-se, o que compreensívelmente lhe causava alguma preocupação. Respondi o melhor que pode e soube e rematei com alguma sobranceria que, por regra geral, o mercado permite a sobrevivência aos que apresentam qualidade.




Estava longe de imaginar o que dali ia sair. João Pina rápidamente se afirmou como um dos mais fulgurantes talentos da sua geração, colecionando prémios, honrarias e granjeando reconhecimento público. Precisamente por não se querer submeter apenas à sobrevivência num mercado recessivo e madrasto,  arrisca e ganha a aposta numa consequente carreira internacional. Etapa deste percurso são as suas imagens das  favelas do Rio, assunto ao qual se dedica há um par de anos. Uma dessas reportagens foi inicialmente publicada na augusta New Yorker, e recentemente difundida no "El Pais". Significativamente, ainda nenhum jornal nacional assegurou a sua publicação. Lá se confirma a elegante eficácia com que Pina obtem a dificil simbiose entre o plasticizante e o informativo, mostrando a maturidade dos grandes talentos. Trocado por míudos, parece fácil. Mas não é.




Bom Salieri que sou, vivo feliz com o talento alheio. E é necessário reconhecer que Pina é somente um dos empenhados fotógrafos que integram a KameraPhoto, agência lusa que paulatinamente tem imposto no mercado nacional um certo fotojornalismo "engagé", o que só por si já é coisa de respeito.
Dezenas de outros talentos, a inventariar em futuras ocasiões, povoam a cena fotográfica nacional, a maioria assoberbados por tarefas de ingrata e rotineira agenda e edição numa imprensa escrita que receio agonizante.




Um abraço para todos. Mas, e até porque ser fotógrafo é essencialmente um ofício solitário, o momento é de João Pina.

19.10.09

FOTÓGRAFOS, VIDEÓGRAFOS E AFINS; CONTRIBUIÇÃO PARA UM DEBATE


O fotojornalista videógrafo Danfung Dennis algures no Afeganistão com a 
sua Canon 5d MkII  vestida para filmar. ©Joe Raedle/Getty


O problema que mais aflige a profissão, com especial incidência no fotojornalismo,  é a actual diminuição dos "fees", tanto em termos relativos como absolutos,  comparativamente ao que se auferia ainda há meia dúzia de anos. Tendência internacional, afigura-se como inelutável à maioria dos profissionais, que veem a sua dignidade posta em causa. Os grandes fabricantes japoneses de material fotográfico pressentiram o sangue, e tem desenvolvido em anos recentes uma panóplia de produtos hibrídos que partem de um berço "foto" para capacidades de registo videográfico cada vez mais performante. Vão naturalmente de encontro às expectativas de parte de uma classe no seu todo muito receptiva aos avanços tecnológicos, que tende a ver no video o prolongamento natural do seu mister, se bem que por razões diversas.


Assim, as hostes dividem-se entre aqueles, que como o muito nosso Manuel Almeida, acham genuinamente que a videografia é um media que em dadas circunstâncias é o prolongamento natural das suas capacidades de "storytelling". E outros, que mais comercialmente orientados, abraçam os novéis suportes de uma maneira mais pragmática. Como declaração de intenções, digo que caso chegue a tal, incluir-me-ei nesta segunda categoria. Mas a nuvem que ameaça o fotojornalismo tradicional, fácilmente faz chover sobre este  mundo. Ou seja, para alem da necessidade incontornável de seguir as piruetas da tecnologia, urge séria reflexão colectiva acerca da maneira mais eficaz de cobrar ao mercado este "upgrade" do produto visual fornecido. 

É minha sincera opinião que, ao avançar com excessivo voluntarismo, se corre o risco de "estragar" um outro mercado que tem os seus agentes estabelecidos, a juntar ao já tão maltratado campo da "still photography".

Sobretudo numa realidade como a nossa, cheia de contabilistas editoriais de mercearia, devidamente acolitados por um naipe de chefias intermédias entaladas entre a espada dos chefes e a parede dos indíos. E que como todos, navegam à vista.

À consideração  da plateia e com a devido agradecimento aos "links" do sempre atento David Clifford, pela inspiração para esta entrada.

17.10.09

ACERCA DA " STREET PHOTOGRAPHY" E DAS SUAS VÍTIMAS.























©Bruce Gilden in "A Beautiful Catastrophe"

A disciplina fotográfica mais polémica na relação entre fotógrafo e fotografado, o direito à imagem e à privacidade, deve ser a chamada "Street Photography". Conheço poucos fotógrafos que em dado momento não tenham feito incursão neste género, que quando feito com honestidade é dificil e sofrido, por, como bem sumariza a nossa camarada Anabela Oliveira, ser preciso a coragem "para ir lá, sujeitar-se a ser agredido como, no fundo, podemos estar a agredir os fotografados."


Não sei se esta interessante reflexão ética faz parte das preocupações do fotógrafo da Magnum Bruce Gilden (Brooklin, 1946), um dos expoentes máximos do género, cujo registo é particularmente cru. As "vítimas" que caça nas mais variadas latitudes aparecem maioritáriamente com um ar de desconchavo fatal, espécie de "Fellini meets Diane Arbus by Stephen King". Gilden esteve há alguns anos em Portugal, onde produziu, fiel á sua estética, uma série notável, junto da comunidade cigana de Braga. Quem o conheceu diz-me que é o arquétipo do Nova Iorquino à lá Woody Allen, neurótico, mas muito divertido. E  alheado q.b. do recorrente debate que a sua práctica inevitávelmente desencandeia.


Por mim, se fosse seu defensor, advogaria que o seu trabalho, ao documentar fragmentos de uma sociedade viva e mutável, num dado espaço e tempo, tem a valia de um August Sander.
Se fosse seu detractor diria que Gilden não passa de um predador visual que não hesita em sacrificar a dignidade dos seus semelhantes à sua própria visão social apocalíptica.
Mas a perplexidade e o fascínio que a sua produção e  modus operandi me causa, não me facilita a sentença. Diz o próprio num depoimento a propósito da sua série no Haiti em 1985 que, "When a viewer looks at my pictures, I just hope that they make up a story about what goes on."
Justo. Olho então para a personagem da direita da "dupla" acima reproduzida, extraida do seu celebrado livro "A Beautiful Catastrophe"; e a história que faço é a de uma cidadã, que já teve da vida a sua dose de misérias, má sorte e chatices sortidas, e que dispensaria a honra de se ver dada à estampa, em papel couché e nas boas galerias, como actriz involuntária de um projecto visual que inventaria "the human zoo that is New York".


Certeza só tenho que isto da fotografia tem que se lhe diga.

15.10.09

OS INSTANTES EM QUE NADA SE DECIDE.


Hiroshi Sugimoto, in "Theaters"
                                     



Todas as prácticas fotográficas têm razões de sedução.  Por mim, tanto pasmo com o olho nervoso do Ronis que congela o "instante decisivo" como me hipnotizo com as paisagens maritimas de Hiroshi Sugimoto (Tóquio, 1948), onde nada se passa, nem o tempo. 

Uma das imagens a que volto sempre, é precisamente de Sugimoto. Este japonês (in)tranquilo é practicante exímio de uma certa  introspecção visual alucinatória, assente em notáveis "tour de force" técnicos. Fotografa até hoje em pelicula de grande formato, suporte que "fala" naturalmente com esta tal foto da sua série "Theaters" dos anos 70. A hora e meia, ou coisa assim, que durou a exposição, é um longo instante em que nada se decide. As imagens projectadas na tela dissolvem-se num "white noise", que transmuta a narrativa directamente para o curso que a nossa imaginação lhe quiser dar. 

Que será sonho ou pesadelo,  a decidir, (ou não) nos longuíssimos instantes da nossa individualidade mais inconfessável.


Conhecer mais de Hiroshi Sugimoto, aqui e aqui.

7.10.09

IRVING PENN. OS BONS MORREM VELHOS.


                      Lisa Fonssagrives por Irving Penn


Tem sido um ano aziago, cheio de partidas de grandes senhores da fotografia. Primeiro Julius Shulman, depois Willy Ronis, e agora foi a vez de Irving Penn, gigante da moda, retrato e arredores.


Para além de tudo o mais, Penn sempre me foi um personagem simpático. Quando uma vez, já artista consagrado um entrevistador lhe perguntou o sacramental "Senhor Penn, o que o leva a fotografar?", disparou a mais sincera das respostas, que o pedantismo e insegurança veda aos talentos remediados: "Porque é o que sei fazer de melhor para me sustentar a mim e à minha familia".


Quanto à sua obra, a melhor homenagem que podemos fazer é olhar e olhar e voltar a olhar. Aqui é um bom sítio para começar.
Em nota de rodapé, nota-se que Schulman morreu aos 98 anos. Ronis aos 99. E agora Penn passou-se aos 92 ( e ainda teve a boa ventura de se poder casar com a sua modelo favorita, a deslumbrante Lisa Fonssagrives); parece que tirar boas fotografias ajuda à longevidade.
Pessoal, tudo para trás da máquina com entusiasmo e honestidade. Muitos vamos morrer cedo, mas pelo menos tentámos.

3.10.09

ANJO OU DEMÓNIO: A FOTO QUE EU GOSTAVA (MESMO) DE TER FEITO.




                                                                                                    Ralph Gibson, in "The Somnambulist"



Muito resumidamente,  o  norte-americano Ralph Gibson (Los Angeles, 1939), é uma espécie de pássaro raro no panorama fotográfico,  um daqueles tipos que ao longo de uma carreira melhor conseguiu firmar o que se convenciona chamar de uma singular “assinatura” visual.
Filho de um assistente de realização de Hitchcock, as suas visitas juvenis aos estúdios  da Warner Brothers gravaram-lhe na retina a luz com que o mestre “dourava” os seus clássicos a preto e branco.
Nos anos 60 trabalha como assistente de Dorothea Lange e Robert Frank, o que só por si seria para muitos outros currículo bastante.
Discreto, não faz parte dos nomes mais reconhecíveis pelo grande público, mas é Comendador da Ordem das Artes e Letras de França, e os seus clientes comerciais são os nomes mais topo possível da indústria da moda e do luxo.
Acerca do seu trabalho pessoal, largamente celebrado, diz coisas tão limpidas como, “I really believe that the problem for me is for me to perceive something clearly, and it doesn’t matter where I am. I’ve been in Japan, I’ve been all over the world and I come back with the same photographs. It appears that wherever I go I tend to bring my vision with me.”

De todas as fotos que vi até hoje, a que sempre mais me assombrou, aquela que eu de facto gostaria de ter imaginado, é esta imagem da sua fabulosa série “The Somnambulist”,  que já nos anos 70 lhe granjeou uma audiência.


Não sei se é de anjo ou demónio a mão que entreabre aquela porta, que a vezes me atrai ou faz fugir.
Mas um dia vou saber.